Relatório do órgão de combate à lavagem de dinheiro destacou transações do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, que tem remuneração de R$ 26 mil; defesa diz que todas as transferências são lícitas
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão de combate à lavagem de dinheiro, apontou movimentação “atípica” e “incompatível” nas contas bancárias do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro. O militar está preso e é investigado pela Polícia Federal por participar de um esquema de supostas fraudes no cartão de vacina e por manter conversas de teor golpista.
No documento, obtido pelo GLOBO, o Coaf destacou que encontrou nas contas de Cid indícios de “movimentação de recursos incompatível com o patrimônio, atividade econômica ou a ocupação profissional e capacidade financeira do cliente” e “transferências unilaterais que, pela habitualidade e valor ou forma, não se justifiquem ou apresentem atipicidade”.
Procurado, o advogado Bernardo Fenelon, que defende Cid, afirmou que “todas as movimentações financeiras do tenente-coronel, inclusive aquelas referentes a transferências internacionais, são lícitas e já foram esclarecidas para a Polícia Federal”. O criminalista ainda pontuou que “todas as manifestações defensivas são apenas realizadas nos autos do processo”.
Ao analisar as transações financeiras de Cid, o Coaf registrou que o militar movimentou R$ 3,2 milhões em seis meses — de 26 de julho de 2022 a 25 de janeiro de 2023. Nesse período, ele registrou operações de R$ 1,4 milhão em débitos e R$ 1,8 milhão em créditos. Militar da ativa, o tenente-coronel recebe mensalmente uma remuneração de R$ 26.239.
Entre as operações destacadas pelo Coaf, está o envio de remessas aos Estados Unidos no valor de R$ 367.374 em 12 de janeiro de 2023 — data em que Cid e Bolsonaro se encontravam naquele país. Os dois saíram do Brasil no fim de 2022 e não acompanharam a transmissão do cargo para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
“Considerando a movimentação elevada, o que poderia indicar tentativa de burla fiscal e/ou ocultação de patrimônio e demais atipicidades apontadas, comunicamos pela possibilidade de constituir-se indícios do crime de lavagem de dinheiro ou com ele relacionar-se”, diz trecho do relatório.
O Coaf também chamou a atenção para quatro pessoas que fizeram transações com Mauro Cid. Entre elas, há um “caixeiro viajante”, um “ourives”, um tio de sua esposa e o sargento Luis Marcos dos Reis, que era subordinado do ex-ajudante de ordens na Presidência e também é investigado pela Polícia Federal.
Sobre a movimentação financeira entre Cid e Reis, o Coaf fez o seguinte registro: “Considerando a movimentação atípica sem justificativa e as citações desabonadoras na mídia tanto do analisado como do principal beneficiário, comunicamos pela possibilidade de constituir em vício do crime de lavagem de dinheiro ou com ela relacionar-se”.
Investigação em andamento
Dentro da Polícia Federal, há apurações em andamento que buscam rastrear o dinheiro movimento nas contas de Cid. A PF analisa a existência de um suposto esquema de pagamento de despesas pessoais do então presidente Jair Bolsonaro e de sua mulher, Michelle Bolsonaro, por meio de recursos públicos. Uma das linhas de investigação apura se Cid seria o responsável por coordenar essa operação. Como ajudante de ordens, ele era responsável por cuidar das contas pessoais do ex-presidente e seus familiares. Investigadores também miram as remessas feitas por Cid ao exterior.
Preso desde maio
Mauro Cid está preso preventivamente em um batalhão do Exército desde o dia 3 de maio, quando foi alvo de uma operação da PF que investiga supostas fraudes no cartão de vacinação de Bolsonaro e de pessoas ligadas a ele. A apuração aponta que dados falsos foram inseridos nos documentos do ex-presidente e familiares
O esquema que pretendia incluir dados falsos nas carteiras de vacinação foi abrangente: houve tentativas em Cabeceiras, no interior de Goiás, e em Duque de Caixas, na Baixada Fluminense. O início remonta a 2021: em novembro daquele ano, mensagens mostram que Cid acionou um interlocutor para tentar fraudar um cartão de vacinação para a mulher, Gabriela Santiago — “Joga na minha conta”, escreveu. O contato no município goiano era um médico, mas as dificuldades de inserir no sistema do Ministério da Saúde um lote de vacinas destinado ao Rio em um documento emitido em Goiás estenderam os tentáculos da empreitada para o Rio, onde um vereador foi acionado para desatar o nó
As vacinas que, na verdade, Bolsonaro não recebeu, foram criadas com datas de agosto e outubro de 2022, em dias em que a investigação aponta que o ex-presidente não esteve nos postos de saúde de Duque de Caxias. Em dezembro, às vésperas da viagem para a Flórida, os registros foram acrescentados, e os certificados digitais de vacinação, baixados. Os acessos ao aplicativo ConecteSUS ocorreram a partir de redes do Palácio do Planalto — em outro caso, o acesso foi feito por meio do celular de Cid.
Para a PF, o inquérito indica que Bolsonaro e o ex-ajudante de ordens tinham “plena ciência da inserção fraudulenta dos dados de vacinação”. O relatório acrescenta que a inserção tinha o objetivo de gerar “vantagem indevida” para o ex-presidente.
Mensagens de teor golpista
No celular de Cid, a PF encontrou ainda arquivos que reforçam a existência de uma trama golpista no entorno do então presidente, o que incluiu um documento apócrifo com uma declaração de estado de sítio, salvo pelo oficial em seu telefone após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva na eleição do ano passado. O relatório da Polícia Federal (PF) elaborado após a análise do conteúdo do aparelho revela também mensagens em que militares da ativa defendem um golpe de Estado, seja diretamente a Cid ou em grupos de WhatsApp dos quais o oficial fazia parte.
Em 1º de dezembro de 2022, por exemplo, o coronel Jean Lawand Júnior disse a Cid, fazendo referência a Bolsonaro: “Ele dê a ordem, que o povo está com ele”. O então ajudante de ordens responde: “Mas o presidente não pode dar uma ordem se ele não confia no Alto Comando do Exército”. No dia seguinte, Lawand reforça: “Ele tem que a dar a ordem”.
O que faz o Coaf
O Conselho de Atividades Financeiras atua na prevenção e combate à lavagem de dinheiro. Uma das atribuições é a elaboração de Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs), produzidos sempre que as movimentações preenchem parâmetros considerados suspeitos. Os documentos não apontam crimes, mas servem para embasar investigações e são distribuídos para as autoridades competentes pelas apurações.